Vista do paredão do Boqueirão da Pedra Furada, a frente, quase imperceptível ,
a pintura do grupo de acrobatas que deu origem a este trabalho
Patrimônio Cultural da Humanidade o Parque Nacional da Serra da Capivara abriga mais de 25.000 pinturas e gravuras rupestres em seus mais de 700 sítios arqueológicos, 120 já abertos à visitação pública. Hoje o Parque é parte de um grande complexo de preservação e proteção ambiental e cultural com seus 130.000 hectares somando-se a um corredor ecológico e aos 526.000 hectares do Parque Nacional da Serra das Confusões onde a cada dia descobrem-se novos sítios arqueológicos. '
E tudo isso começou porque o Prefeito de São Raimundo Nonato mostrou para uma jovem pesquisadora algumas fotografias daquelas pinturas que o povo chamava de “coisas de índio velho”. E Niède Guidon, brasileira de Jaú, filha de índia e francês, formada em História Natural em São Paulo e Doutora em Arqueologia pela Sorbonne, em Paris, não sossegou enquanto não conseguiu chegar até lá e ver com seus próprios olhos. Nunca mais abandonou a região. Voltou para Paris, conquistou títulos, escreveu livros e inúmeros artigos científicos e conseguiu à custa de uma perseverança admirável e de uma capacidade de liderança ímpar transformar aquela área abandonada aos pecuaristas e desmatadores na maior concentração de sítios arqueológicos das Américas. E de quebra mudou o entendimento que o mundo tinha sobre a história do povoamento da Terra.
Pequenos seixos lascados unifacialmente são a prova de que a região do Boqueirão da Pedra Furada já era habitado há 100.000 anos atrás. Pequenos pedaços de carvão em roda, formando uma espécie de fogão primitivo, foram datados em mais de 40.000 anos e somando estas evidências às inúmeras novas descobertas de ossos, artefatos de pedra, contas e até um cocô humano demonstrou-se que aquela região foi permanentemente ocupada entre 100.000 e 6.000 anos atrás. Todos estes achados colocaram por terra a teoria de que o homem só teria chegado à América do Sul há 12.000 anos atrás.
Muito se tem descoberto desde a chegada de Niède e sua pequena equipe à Serra da Capivara em 1970. Graças a ela e aos abnegados arqueólogos brasileiros hoje temos diversos sítios em estudo espalhados por todo o país e podemos começar a compreender melhor nossos antepassados.
Um dos elementos mais interessantes a nos ajudar a compreender o mundo de 100.000 anos antes de nós é a arte deixada nas pedras no Piauí, na Bahia, no Rio Grande do Norte, em Pernambuco e no Maranhão. Nestes Estados diferentes sítios arqueológicos parecem terem sido ocupados por humanos de uma mesma tradição cultural.
Estudos sobre a arte rupestre devem ser sempre encarados com muito cuidado pois o simbólico de cada cultura, de cada grupo humano em cada época tem significados diversos e por mais que possamos encontrar imagens que nos tocam hoje, que parecem a nós representações claras de atos perfeitamente reconhecíveis temos que ter em mente que não dominamos aquela cultura. Não conhecemos, a não ser por pequenos sinais, nada de seu cotidiano, de suas linguagens e de suas convenções estéticas.
Niède Guidon sempre dá como exemplo o desenho de um circulo cercado de pequenas linhas. Para nós o símbolo mais óbvio do sol. No entanto para um índio krahô aquela é a imagem da aldeia e dos caminhos que levam às roças.
O estudo da Arte Rupestre é um segmento da arqueologia que exige profundo conhecimento da Antropologia e uma grande capacidade de auto controle. Como diz a arqueóloga Gabriela Martin sobre o trabalho de Anne Marie Pessis sobre as pinturas da Serra da Capivara, publicado no livro Imagens da Pré-História:
“.... um esforço inovador na compreensão do imaginário visual das sociedades indígenas brasileiras. ...... uma abordagem teórica, que permite uma análise rigorosa e sem concessões interpretativas.” (o destaque é meu)
Aventuras de uma Acrobata Mental na Serra da Capivara
Há muito tempo tenho usado este termo - acrobata mental - para definir a perigosa arte de traduzir o universo circense para além dele mesmo, desvendando sua história e revelando seus admiráveis personagens.
Mas desde o momento em que me deparei com a imagem dos Acrobatas do Boqueirão da Pedra Furada, percebi que estava diante de um desafio digno de um salto triplo no trapézio. E sem rede.
Quanto mais olhava para as figuras mais tinha certeza de que estava vendo a representação de uma ação acrobática: o movimento de cabeça da figura à esquerda no grupo do meio, cabeça para trás, corpo arqueado, pernas seguindo o movimento; os braços da segunda figura à direita que parecem jogar o companheiro que tem os pernas dobradas soltas no espaço, pura acrobacia. Me encantei com a delicadeza da figura central que apóia a cabeça do companheiro, os braços para cima e a cabeça para trás. Tudo isso dá à cena um movimento, uma dinâmica, uma expressividade acrobática.
Mas quando comecei a me embrenhar nos meandros da arqueologia o medo tomou conta de mim. Será que esta era uma hipótese viável ? As palavras de Gabriela Martim e a tese da Anne Marie Pessis me perseguiram o tempo todo. - Não posso me permitir “concessões interpretativas!” - pensava eu.
Por muito tempo meu maior pesadelo foi a legenda desta imagem no livro Imagens da Pré-História:
“ figuras humanas dispostas em círculo, onde as distâncias e a profundidade são produto de uma “perspectiva plana”.
Esta “perspectiva plana” me persegue até agora.
Li, li muito. E me deparei com um universo imenso que se refaz a cada nova descoberta. A arqueologia é uma ciência para gente de nervos fortes, como os acrobatas. A todo momento uma nova descoberta, uma nova datação te obriga a rever todos os teus conceitos, a refazer o trabalho de uma vida por conta de uma conta de um colar encontrado ao lado dos ossos de uma jovem soterrada há tantos milênios.
Num primeiro momento acreditou-se que as figuras pintadas no Boqueirão da Pedra Furada teriam no máximo 12.000 anos. Mas há relativamente pouco tempo conseguiu-se datar uma área de escavação que continha uma placa de rocha pintada em 27.000 anos. Portanto podemos afirmar que aquelas figuras podem ter sido pintadas há mais de 27.000 anos. Infelizmente ainda não foi desenvolvido um método para datar os pigmentos, assim não podemos afirmar em que momento foi feita esta ou aquela figura específica. O que sabemos com certeza é que seres humanos, ligados àquelas tradições pintaram naquelas rochas por mais de 27.000 anos.
A explicação de porque naquela figura a roda estaria representada na perspectiva plana e em outros inúmeros momentos encontramos figuras em perspectiva com profundidade é dada pelos estudiosos, Anne Marie Pessis à frente, através do estabelecimento de diferentes tradições, algo que de uma forma simplista traduzo aqui como estilos.
Trata-se de uma questão complicada, assunto para especialistas. Mas me permito aqui, mais uma vez, me apropriar do discurso de Gabriela Martins no seu livro Pré-História do Nordeste do Brasil:
“O termo tradição está bem aceito e arraigado no Brasil para as macro-divisões de registros rupestres se bem que nem todos os autores estejam de acordo com sua conceituação. Utilizado também para as indústrias líticas e cerâmicas, equivale ao conceito de horizonte cultural, termo menos utilizado, porém usual na bibliografia de outros países do continente.
O conceito de tradição compreende a representação visual de todo um universo simbólico primitivo que pode ter sido transmitido durante milênios sem que, necessariamente, as pinturas de uma tradição pertençam aos mesmos grupos étnicos, além do que poderiam estar separados por cronologias muito distantes......
Um dos primeiros pesquisadores a utilizar o termo tradição aplicado à arte rupestre foi Valentin Calderón, na Bahia, em 1970, para definir “o conjunto de características que se refletem em diferentes sítios associados de maneira similar, atribuindo cada uma delas ao complexo cultural de grupos étnicos diferentes, que as transmitiam e difundiam, gradualmente modificadas através do tempo e do espaço.”
A definição de tradição formulada por A.M. Pessis e N. Guidon (1992) considera os tipos de figuras presentes nos painéis, as proporções relativas que existiam entre esses tipos e as relações que se estabelecem entre os diversos grafismos que compõem um painel. Os tipos que caracterizam uma tradição são estabelecidos a partir da síntese de todas as manifestações gráficas existentes na área arqueológica determinada, ou resumindo: “ a classe inicial conhecida como tradição ordena os registros gráficos por grupos que representam identidades culturais de caráter geral”.
Para A Prous (1992), a tradição é “a categoria mais abrangente entre as unidades rupestres descritivas, implicando uma certa permanência de traços distintivos, geralmente temáticos.”
Gabriela finaliza esta explicação com um parágrafo que me encheu de esperanças:
“A ambiguidade das definições reflete, em geral, a dificuldade de se conhecer o universo extremamente complexo que representa a arte rupestre, do qual raramente possuímos contexto, realidade que distingue a arte pré-histórica das restantes manifestações estéticas do homem.”
O trabalho realizado por Niède Guidon e Anne Marie Pessis na Serra da Capivara foi fundamental para todos os estudos realizados na arte rupestre brasileira, notadamente nas figuras encontradas no Nordeste. As pesquisadoras estabeleceram duas grandes tradições, a Nordeste e a Agreste que são divididas em sub-tradições de acordo com a região e algumas características de técnica e estilo.
A grande maioria das figuras encontradas na Serra da Capivara foram classificadas na Tradição Nordeste. As características fundamentais desta tradição seriam a variedade dos temas apresentados; a riqueza de enfeites e atributos que acompanham a figura humana; o movimento e a dinâmica; o pequeno tamanho das figuras humanas, geralmente entre cinco e quinze centímetros. Gabriela Martin, assim define a tradição Nordeste:
“(as figuras humanas são) às vezes possuídas de grande agitação, com o rosto de perfil como se gritassem. A luta, a caça, a dança e o sexo são habilmente representados com grande riqueza de interpretações, utilizando-se uma técnica de traço leve e seguro.”
Neste momento comecei a me tranquilizar, respirei fundo e voltei a me concentrar na acrobacia e nos acrobatas pré-históricos. Pois se com todo o cuidado para não se permitir “concessões interpretativas” minhas arqueólogas preferidas concordavam que ali haviam cenas de dança, luta e sexo, me senti liberada para retomar meus estudos sobre a prática das artes da proeza e do equilibrio na pré-história.
A Pedra Furada
Ombro a ombro - colunas humanas acrobáticas na pré-história
Outra figura acrobática, e essa recorrente em toda a tradição nordeste, são as pinturas de figuras humanas equilibrando-se nos ombros uns dos outros.
Toca da Entrada do Pajaú
À esquerda uma imensa coluna de quarta altura. O imenso animal não parece fazer parte da cena. O mesmo não se pode dizer da pequena figura que parece voar, pernas e braços soltos no alto à esquerda.
Coluna de quatro Toca do Pajaú
A figura da base está segurando a da segunda altura pelas mãos. A da terceira altura parece equilibras-se sobre os pés do da segunda e, por sua vez, segurar o da quarta altura pelas mãos.
Exagero do artista ? Representação do imaginário ?
Ou habilidade técnica extrema ?
As figuras de colunas humanas são bastante comuns em diferentes sítios arqueológicos. Na Toca do Pajaú, sítio próximo ao Boqueirão da Pedra Furada encontramos várias versões dos equilibristas pré-históricos.
Uma das pinturas mais curiosas que já vi. A sensação é de um salto pintado quadro a quadro.
Teriam nosso antepassados inventado o cinema?
De qualquer forma esta é uma das imagens que vem corroborar a tese da prática de acrobacia pelos grupos humanos que pintaram as tocas na Serra da Capivara. Nunca poderemos afirmar o sentido dessas figuras, o por que elas foram pintadas nem o que representavam. No entanto nossos antepassados se preocuparam em desenhar figuras que estão completamente de ponta cabeça, como a primeira à esquerda. E depois os movimentos de cada uma das figuras demonstram uma capacidade de colocar a coluna em arco, de voar sem nenhum apoio, como num salto mortal. Nesta linha chama a atenção que a figura central esteja de pé, em equilíbrio completo enquanto todas as demais estão em diferentes posturas de salto.
Conclusão:
As imagens encontradas neste primeiro contato com o universo das pinturas rupestres do nordeste brasileiro demonstram que nossos antepassados realizavam proezas de equilibrarem-se uns sobre os outros seja com os pés sobre os ombros dos companheiros seja com o equilibrio de “mão a mão”.
Demostram também que nossos antepassados conheciam os movimentos do salto mortal, quando o indivíduo dá uma volta completa no ar, sem tocar no chão.
As pinturas por mais que tenham significados que nunca seremos capazes de conhecer demonstram seres humanos em atividades acrobáticas.
Acredito que se estudarmos com método o universo da arte rupestre daquela região encontraremos mais figuras em movimentos acrobáticos. Esta pesquisa é apenas o começo de um trabalho que deve ser realizado sem demora.
As Artes Circenses tem um papel fundamental na expressão cultural de toda a humanidade. São inerentes ao ser humano. As pinturas de nossos antepassados são um eloquente testemunho do papel que as Artes Circenses tem na cultura humana e nos ajudarão a chamar a atenção de nossos contemporâneos sobre a nossa responsabilidade em proteger e valorizar esta forma de expressão artística que tem na sua essência a realização de proezas e a valorização do insólito, do que nos parece impossível de realizar. O Circo é a arte de tornar o sonho realidade.
Boa Leitura e se deliciem com as descobertas de Alice Viveiros, que vão nortear nossa expedição.
Trio no ar ou apenas uma coluna pintada numa área em negativa ?
Toca da Entrada do Pajaú
Estes equilibristas estão na encosta da rocha, numa área em negativa. A ilusão é de um trio de trapezistas que se balançam no ar.... No entanto é bem mais provável que seja mais uma coluna dessa vez pintada por alguém numa incômoda posição....
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